Era 2009.
Eu na pele da advogada recém formada, aos 20 poucos anos, louca por validação e por preencher o currículo de simpósios jurídicos, pós graduações e artigos escritos para o jornal, acordei e decidi que ia fazer italiano. Assim mesmo, DO ABSOLUTO NADA.
Eu sempre amei línguas e estrangerismos. Já tentei descobrir o porquê de tanta fixação nisso (até em Cartomante já tentei resolver isso) e acabei achando alguma coisa lá no meu mapa astral natal (o que me deu um certo alívio, confesso. É muito difícil lidar com "obsessões sem motivo” pra mim).
Essa identidade ligada a acessar novos conhecimentos por meio de línguas estrangeiras nasceu bem cedo. Criança e jovem eu fiz inglês, alemão e espanhol. Todos por questões escolares ou curriculares. Todos com um quê de utilidade para o meu futuro profissional, por mais que eu gostasse.
Mas o curso de italiano não. Ele veio de um lugar do puro deleite.
Quando decidi contar minha decisão para os meus colegas de trabalho eles responderam: “que ótima escolha! a vigésima sétima língua mais falada do mundo! Vai ser muito ÚTIL aprender essa nova língua". Nunca vou esquecer desse deboche. Especialmente porque ele me provou que eu estava certa na minha escolha.
Eu lembrei disso que vivi ouvindo a Bruna Martiolli, host do podcast É Tempo de Morangos no episódio é preciso amar o inútil.
Isso me fez parar pra refletir quando tinha sido a última vez que tinha feito algo bem inútil. E imediatamente lembrei do curso de italiano no Consulado Italiano do Rio. Possivelmente já fiz outras coisas inúteis depois disso, mas essa foi a mais marcante, porque dediquei tempo e dinheiro por pelo menos 3 anos (eu me formei, inclusive!). E foi uma época tão gostosa e de pequenas alegrias. Eu agradeço demais à Carol dos 20 poucos anos por essa pequena transgressão da regra da utilidade.
A inutilidade me levou a fazer uma imersão na cultura e na culinária italiana - para além das firulas gourmetizadas dos restaurante caros. Eu sentava em restaurantes na hora do almoço e tentava escrever a rotina do dia em um caderninho com a capa do filme Dolce Vita. Mais uma vez: inútil.
Eu ia até o jornaleiro do centro do Rio para comprar jornais italianos e passava o final de semana lendo sobre notícias de lugares distantes e desconhecidos, só pelo prazer de entender o texto e me sentir “vivendo" como se estivesse na Itália.


Cheguei a morar na Itália por 1 mês inteirinho, ficando parte desse tempo na casa de uma senhora, cuja ocupação era bater palma em programas de auditório (tipo aqueles do Silvo Santos) e alugar os quartos de um espaçoso apartamento romano para jovens estudantes. Todo dia passávamos na feira, só pra ouvir o feirante ditar uma receita de minestrone ou dicas de como comer a mozzarella.
Na volta da Itália, comprei uma mala de mão que abarrotei de livros italianos (incluindo os 2 do Primo Levi, que recomendo demais - Se isto é um Homem e Trégua) e DVDs de filmes, como Noites de Cabíria em preto e branco (sim, gente, DVDs!).
Eu não sei quando isso mudou. Talvez a falta de tempo que a maternidade e os boletos impuseram. A realidade sempre massacra os sonhos. E fico com essa saudade da inutilidade, desse Sal da Vida.
Tudo virou ritual de produtividade. Todas as escolhas precisam se pagar e gerar benefícios físicos e mentais. A gente precisa comprar um monte de ferramenta que poupe tempo.
E eu não tô me isentando disso não. Nos últimos anos me deixei levar muitas vezes pela narrativa do custo benefício. E isso roubou certa espontaneidade e o tal salzinho inútil que a vida precisa ter pra fazer sentido. Por falta de tempo e ansiedade de resultados, caí na armadilha de perder tempo orquestrando rotinas irreproduzíveis semanas mais tarde. Tudo em prol da produtividade, velocidade e retorno do investimento. E sabe o que me ocorreu? Fiquei desinteressante (pra mim mesma).
Outro dia mesmo recebi uma pergunta na DM: “quantas páginas tem seu Guia?" (que por sinal é um e-book que custa R$ 39,00). Eu fiquei muito reflexiva sobre essa pergunta. Por que a pessoa perguntou isso? A gente agora passou a avaliar se um conhecimento vale ou não a pena acessar pela quantidade de páginas? Pelo tempo que vamos demorar para ler?
Eu sempre fui curiosa, gosto de novos conhecimentos, de demorar na livraria pra ler capa de livro. Viajar então: eu era capaz de sorver a experiência para muito além dos cartões postais (com filhos, confesso que o tempo não passa lento assim, porque estou sempre 100% atenta). Gostava de me demorar nos lugares, conversar com locais. Tudo para deixar as memórias da viagem ainda mais vívidas na mente. Quando eu vejo as fotos eu sou capaz de lembrar do cheiro e da temperatura do vento.
Dormir tarde para esticar uma leitura, deixar a taça de vinho suja na pia, tomar café com bolo quente, entrar na livraria só pra fuxicar as capas de livros, assistir a uma série boba (Invejosa, da Netflix, é ótima), comer biscoito de polvilho com mate adoçado na praia, não ter hora pra almoçar e depois comer uma macarronada ao invés de carboidrato. Tudo inútil.
Como diria Camus: “Se é que existe, o pecado contra a vida talvez consista menos em desesperar-se do que esperar por outra vida e fugir à grandeza implacável desta…"
Se permita o prazer do inútil. Esse é o verdadeiro sal da vida!
Até a próxima!
Carol
CTRL-N.euro: abra uma nova janela na mente!
Série Netflix: SEIS ZEROS
Seis ganhadores da loteria descobrem que só terão direito à fortuna depois de concluir um curso obrigatório com uma psicóloga, que vai prepará-los para a grande mudança de vida. Aqui os amantes de comportamento financeiro vão se deleitar e reconhecer clientes (ou a si próprios).
Youtube Shorts
Deixo aqui 2 trechos da entrevista da Marina Silva que é maravilhosa sobre o espírito de cada tempo e sobre como mudamos a lógica do SER para o TER.
Ah, que saudade do inútil! Ando muito reflexiva sobre escolhas e a falta de experiências desse tipo. Será a idade? Será que com o passar do tempo precisamos desse resgate?
Me vi muito no seu texto! Sou recém formada, trabalho e estou fazendo uma capacitação que iniciou pouco mais de um mês depois da formatura. Apesar de estar aprendendo muito, estou doida pra finalizar pra ter um pouco do meu tempo de volta pra que eu possa fomentar meus hobbies e inutilidades. Minhas semanas se tornaram um eterno “corre atrás” das rotinas extremamente dificeis e produtivas que criei pra mim mesma, e que nunca consigo alcançar, o que faz eu me sentir indisciplinada, mal, e como você disse: desinteressante. Porque tudo que faço é em busca de crescer mais. Aos poucos estou mudando isso: tenho jogado sudoku antes de dormir (com o livrinho da banca de jornal, pra fugir das telas), comecei a fazer ceramica fria (ontem passei 5 horas modelando 4 peças que não terão utilidade nenhuma além de servir de decoração e eu poder falar que eu que fiz), estou me permitindo deixar a louça suja por meia hora antes de me sentir na obrigação de manter a casa totalmente limpa o tempo todo. Seu texto foi maravilhoso em mostrar que a gente precisa dessa desaceleração pra de fato, VIVER a vida e não apenas performar.